Mitos e Verdades na Terapia com Tramadol em Cães e Gatos - Profa. Dra. Denise Tabacchi Fantoni
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Profa. Dra. Denise Tabacchi Fantoni
Docente do Depto. de Cirurgia e Anestesiologia da FMVZ – USP
Professora Titular FMVZ - Universidade de São Paulo
Áreas de atuação: Anestesia, analgesia, choque e hemodiluição
INTRODUÇÃO SOBRE A DOR
Embora a dor seja considerada o 5o sinal vital (AAHA/AAFP et al., 2007) e um dos sinais mais comumente encontrados na prática médica veterinária dos animais domésticos, seu tratamento, apesar de apresentar melhora considerável nos últimos anos, ainda é inadequado (ROBERTSON, 2010). Isto pode ser justificado pela dificuldade no reconhecimento dos sinais da dor em cães e gatos, bem como pelas dúvidas e desconhecimento sobre a eficácia e segurança do uso de analgésicos nestas espécies, principalmente em relação aos opioides.
Vários sistemas orgânicos são afetados pela presença da dor, podendo ocorrer taquicardia, hipertensão, taquipneia, prostração, depressão, perda de apetite, alterações imunológicas e da coagulação, entre outras alterações. Estas, podem comprometer a recuperação clínica dos animais, sobretudo daqueles que já apresentam algum comprometimento orgânico, os que são muito jovens ou idosos. entretanto, um dos aspectos mais importantes da presença da dor no pós-operatório é que a mesma pode evoluir em 30 a 50% dos casos para a dor crônica, cujo tratamento nem sempre é 100% eficiente, podendo ainda se prolongar por muito tempo.
Um aspecto fundamental que deve ser sempre levado em consideração é o fato de não haver qualquer razão plausível em se permitir que os animais permaneçam com dor, seja ela de grau leve ou intenso, de causa cirúrgica, traumática, oncológica ou por qualquer outro motivo. este é um dos principais preceitos atuais da terapêutica de cães e gatos.
A avaliação dos animais deve ser sempre individual, e o reconhecimento da dor, um dos grandes desafios na medicina veterinária, deve ser realizado mediante avaliação de diferentes parâmetros, sabendo que parte deles podem ser influenciados por outros fatores, como o estresse.

Figura 1: processos da transmissão da dor e atuação dos fármacos.
TRAMADOL
O tramadol é um analgésico de ação central que tem fracas propriedades agonistas opioides e efeitos sobre a recaptação de norepinefrina e serotonina (RADBRUCH et al., 1996). É comercializado como uma mistura racêmica de l-e s-estereoisômero. após sua metabolização forma-se um metabólito conhecido como O-desmetiltramadol, m1, também nas duas formas. O l-m1 possui um fraco efeito μ-agonista – 10 vezes menos potente que a morfina – porém tem até 200 vezes mais afinidade ao receptor μ-opioide do que a molécula de tramadol (RAEBURN et al., 2002; BRONDANI et al., 2009; MARTINS et al., 2010), enquanto o s-m1 realiza a recaptação de serotonina e norepinefrina.
A analgesia conferida pode alcançar de seis a oito horas, não ocasionando depressão cardiopulmonar e sem efeitos negativos a longo prazo (gastrointestinais, renais ou de coagulação) (WILLIAMS, 1997; MASTROCINQUE & FANTONI, 2003).
Classificado como opioide fraco é utilizado para o tratamento da dor de grau leve a moderado. É adequado como parte de um protocolo multimodal combinado com outros fármacos como dipirona ou AINE's. Esta associação pode ser utilizada até mesmo para o tratamento da dor moderada a grave, havendo então uma redução da dose de opioides e uma somatória de efeitos devido aos seus diferentes mecanismos de ação (MARTINS et al., 2010; FLOR et al., 2013).
Trabalhos recentes concluíram que:
- O tramadol (2 mg/kg a cada 8 horas) quando associado à dipirona e/ou aINe’s foi eficaz para diminuir os escores de dor crônica moderada a grave e para melhorar a qualidade de vida em cães com doença neoplásica (FLOR et al., 2013);
- O tramadol (2 mg/kg e 4 mg/kg) administrado como medicação pré-anestésica forneceu uma analgesia adequada em gatas submetidas à Osh eletiva sendo mais eficaz do que a meperidina (6 mg/kg) até sete horas depois da administração. a meperidina também promoveu analgesia adequada, mas sua curta duração em gatos pode limitar o uso. O tramadol, na dose mais elevada (4 mg/kg) é provavelmente mais eficaz, uma vez que não houve a necessidade de resgate analgésico, apesar de um dos animais ter apresentado sinais de excitação. Não foram observadas alterações significativas nos parâmetros siológicos que poderiam contra-indicar o uso destes opioides nas doses utilizadas para a espécie felina (evaNgelIsTa et al., 2014);
- Uma dose única intravenosa de 4 mg/kg de tramadol produziu uma redução significativa na cam de sevoflurano com duração de pelo menos 3 horas após a administração em cães, reduzindo os efeitos depressores cardiovasculares e respiratórios induzidos pelo anestésico inalatório volátil durante a anestesia (ITamI et al., 2013);
- As moléculas de tramadol m1 são poupadores da função fagocitária e função oxidativa de neutrófilos e monócitos de cães saudáveis. além disso, o tramadol não afeta a produção de TNf, Il-6 ou Il-10, enquanto baixas (45 ng/ml) e intermediárias concentrações (450 ng/ml) de m1 diminuem in vitro a produção de Il-10 em cães. estes achados devem ser con rmados in vivo antes da aplicação clínica destes dados em cães imunocomprometidos (AXIAK-BECHTEL et al., 2015).
- O tramadol empregado na dose de 4mg/kg em cães submetidos à cirurgia de TplO foi capaz de promover analgesia adequada em metade dos animais, sendo que, quando realizado o resgate analgésico com a administração de mais 1 mg/ kg, a analgesia foi adequada em todos os animais (CARDOSO et al, 2014).
Mitos na terapia com tramadol
É necessário que o animal que com um pouco de dor no pós operatório para não estragar a cirurgia?
Não existem evidências de qualquer benefício da presença de dor patológica. em contrapartida, a lista de trabalhos e relatos comprovando os aspectos negativos inatos à um indivíduo com dor é extensa. a sensação de dor nunca é desejável, então sempre deve-se buscar o controle completo da dor. porém, muitas vezes esta abolição completa do processo doloroso não é possível, como no caso de dores crônicas.
As alterações metabólicas induzidas pelo processo de dor retardam a recuperação e a cicatrização de feridas, assim como aumentam a taxa de complicações pós cirúrgicas devido à redução da atividade do sistema imune.

Figura 2: graus de dor de acordo com o procedimento/doença.
O tramadol é um opioide muito forte e deve-se ter cautela ao utilizar em indivíduos muito debilitados?
O tramadol é classificado como um opioide fraco, além de ser um fármaco de ação mista (atua em receptor opioide mi-μ e diminui a recaptação de noradrenalina e serotonina). sabidamente não promove depressão cardiovascular e respiratória, podendo então ser uma excelente opção para a analgesia de pacientes com maior risco de depressão respiratória como os idosos ou debilitados, ou ainda os com trauma crânio-encefálico (Tce). Nos pacientes com Tce ou suspeita, o emprego de opioides fortes que possam deprimir a ventilação causando aumento da pressão parcial de dióxido de carbono e consequente vasodilatação, podem ter seu quadro neurológico agravado.
Como mencionado, os opioides fracos como o tramadol são indicados para o tratamento da dor leve a moderada, ao passo que opioides fortes são indicados para dor intensa. Deve-se levar em conta entretanto que as associações com fármacos de outras classes como os aINes e a dipirona, potencializam o efeito dos opioides, incrementando o grau de analgesia obtidos.
O tramadol não pode ser utilizado em filhotes?
Ao contrário do que se pensava, atualmente sabe-se que em indivíduos jovens, assim como neonatos humanos, a percepção da dor é maior que em adultos, portanto ao passarem por estímulos dolorosos, devem receber adequada analgesia (HELLEBREKERS, 2002).
Filhotes podem receber tramadol, porém as doses são reduzidas inicialmente, para se realizar incrementos para adequação individual do protocolo.

Figura 3: escada de tratamento da dor da organização mundial de saúde (Oms).
O uso de opioides fortes durante a cirurgia descarta o uso de tramadol no pós-cirúrgico?
A dor trans-operatória, ou seja, aquela promovida no momento do estímulo cirúrgico, pressupõe idealmente o emprego de opioides fortes, tais como o fentanil, remifentanil e sufentanil, lembrando que o fentanil é quase 80 vezes mais potente que a morfina. por outro lado, no período pós-operatório imediato e de acordo com a Organização mundial de saúde, a dor de grau intenso deve ser tratada com opioides como a morfina e metadona. Já a dor promovida por procedimentos que ocasionem dor leve a moderada, pode ser tratada no período pós-operatório imediato com os opioides fracos como o tramadol. assim sendo, o uso de um opioide forte no trans-operatório de forma alguma descarta o emprego do tramadol no pós-operatório imediato se o grau de dor se coaduna com seu emprego. Na mesma linha de pensamento, o tramadol também pode dar seguimento ao emprego inicial da morfina ou da metadona administrados no primeiro pós-operatório. Deve-se ter em mente que a dor aguda diminui ao longo do tempo, sendo as primeiras 6 horas o período de maior dor, por conta da in amação ocasionada pelo trauma cirúrgico. À medida que a resposta in amatória vai arrefecendo, a dor também tenderá a diminuir, razão pela qual é comum a substituição do opioide forte pelo fraco, sobretudo quando o animal recebe alta hospitalar. por outro lado, procedimentos que geram dor intensa, geralmente requerem o emprego do opioide forte por mais dias. portanto, os opioides podem ser usados de maneira rotativa à medida que o grau de dor se modifica. Da mesma forma, as doses devem ser ajustadas com o grau de dor, idade e estado geral, havendo, portanto, necessidade de acompanhamento próximo do paciente.
Tramadol em felinos gera muitos efeitos adversos como excitação?
Historicamente o medo do uso de opioides em gatos é grande, e esse fato está associado aos efeitos adversos que ocorriam com o uso de doses excessivas da morfina, no começo do século passado, nessa espécie. contudo, gatos raramente cam excitados quando os opioides são utilizados nas doses adequadas. O que se observa geralmente é um aumento na euforia demonstrado pelo ronronar, movimento de amassar com as patas dianteiras e rolamento. Um aspecto importante nesse contexto é o tipo de opioide, dose e via de administração utilizada. O cloridrato de tramadol é um exemplo em que se veem baixos índices de efeitos adversos. esse fármaco promove leve sedação, não causa depressão respiratória, tampouco bradicardia ou hipotensão e, em poucos casos, euforia. a utilização do tramadol pela via intramuscular em gatos na dose de 2 a 4 mg/kg não gerou excitação nem euforia nos animais estudados (evangelista et al., 2014), e mesmo quando utilizado por via intravenosa em outro estudo, os gatos apresentaram uma redução da euforia após a segunda aplicação, sugerindo o desenvolvimento rápido de tolerância para esse analgésico. adicionalmente, gatos pré medicados com tramadol por via oral de forma crônica não desenvolveram efeitos adversos de excitação ou dependência, sendo esta via de administração segura nesse aspecto (BRONDANI et al., 2009; ROBERTSON, 2008; MIRANDA; PINARDI, 1998).
Alguns gatos podem apresentar salivação após a administração oral, porém a mesma é de curta duração. Outro efeito comum observados em gatos é a midríase.
O uso do tramadol causa constipação e retenção urinária?
Os efeitos adversos como constipação e retenção urinária pelo uso do cloridrato de tramadol são dependentes da dose e, principalmente, da duração da administração. apesar dos felinos serem mais sensíveis, alguns trabalhos demonstraram uma incidência baixa dessas alterações, e mesmo em casos de risco uma boa hidratação e alimentação são o suficiente para minimizar esses efeitos. ademais, a dor não tratada pode causar estase intestinal, distensão abdominal, desconforto e até vômito, comprometendo muito mais a motilidade gastrointestinal (ROBERTSON, 2008; MIRANDA; PINARDI, 1998).
A associação desse analgésico com fármacos anti-inflamatórios também demonstrou boa segurança contra constipação, função urinária e hepática, podendo ser associado quando suas doses e intervalos forem respeitadas (BRONDANI et al., 2009).
O tramadol sempre induz o vômito?
A incidência de vômito induzida pelo tramadol por via intramuscular e intravenosa é de menos de 1,7% (CARDOZO et al., 2014; BRONDANI et al., 2009), e na maioria dos casos a reação mais comum é a náusea e salivação, que acontece em até 6% dos casos. a utilização do tramadol por via subcutânea apresenta índices de náusea e vômito maiores mas, por outro lado, sua utilização pela via oral tem demonstrado nenhum ou poucos episódios de vômito. Um trabalho realizado com cães demonstrou que mesmo em doses altas por via oral (25 mg/kg) não ocorreram episódios de vômito em um período de um ano (MATTHIESEN et al., 1998), e mesmo em casos de vômito a dose do tramadol pode ser reduzida a m de se evitar esses efeitos adversos (ROBERTSON, 2008; BRONDANI et al., 2009).

Figura 4: protocolos de tratamento da dor.