Ciência na prática - Manejo Nutricional das Doenças Gastrointestinais

Empresa

Hill's

Data de Publicação

12/08/2020

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Prof. Aulus Carciof

Serviço de Nutrição Clínica. Hospital Veterinário da UNESP, Campus de Jaboticabal.

Stephanie de Souza Theodoro

Mestre, Doutoranda em Nutrição de Cães e Gatos.

Pamela Bosche Vasconcerva

Residente em Nutrição e Nutrição Clinica de Cães e Gatos.

O trato gastrointestinal (TGI) é responsável pela ingestão e digestão dos alimentos e pela absorção dos nutrientes; além disso, apresenta grande importância na defesa do organismo ao eliminar os antígenos ali presentes. Como mecanismo de defesa há a produção de ácidos gástricos, enzimas digestivas, muco, movimentos peristálticos e secreção de imunoglobulinas. O trato linfoide associado ao intestino (TLAI) reúne mais de 60% das células imunes do corpo, responsável por gerar dois tipos de respostas, a tolerância imunológica a antígenos alimentares e a exclusão imunológica de patógenos que tentam atravessar a barreira intestinal1,2.

Alterações de saúde podem acometer qualquer segmento do TGI, dentre estas incluem-se as disfagias, megaesôfago, alterações de motilidade, gastrites, úlceras e torções gástricas, diarreias agudas e crônicas, neoplasias, linfangiectasia e reações adversas ao alimento (reações de intolerâncias e alergia aos alimentos)1,2,3. Essas alterações resultam em sintomas gerais e muitas vezes semelhantes, incluindo vômito, diarreia, borborigmo, hiporexia, dor abdominal, náusea e perda de peso3,4. Para os objetivos deste texto serão abordados os transtornos gastrointestinais caraterizados pela presença de diarreia, seja aguda ou crônica, com enfoque nesta última.

As diarreias apresentam características que permitem se inferir qual região do intestino está sendo mais intensamente acometida, se intestino delgado ou grosso. Processos localizados no intestino delgado se caracterizam, geralmente, por frequência e volume de fezes normal ou aumentado, ausência de muco, tenesmo, disquezia ou urgência de defecação, quando há sangue apresenta-se como melena, é comum a perda de peso, podendo ocorrer também vômito e esteatorréia. Processos no intestino grosso, por sua vez, geralmente resultam em evidente aumento da frequência de defecações com menor volume, é comum a presença de muco, tenesmo, disquezia e urgência em defecar, quando há sangue nota-se hematoquezia, com ausência de estatorréia e a perda de peso é incomum. Diarreias de intestino delgado tendem a ser de consistência homogênea e pastosa, enquanto as de intestino grosso heterogêneas, com partes mais consistentes misturadas à diarreia e muco.

Outra diferenciação diagnóstica refere-se a processos agudos ou crônicos. Diarreias agudas duram de poucos dias até 2 semanas. Suas principais causas são agentes infecciosos (bactérias e vírus), parasitas intestinais, alterações metabólicas, intolerâncias alimentares, intoxicações, efeitos de medicamentos e obstruções. Geralmente o tratamento limita-se a suporte ao animal, principalmente em doenças infecciosas, como a parvovirose, e inclui fluidoterapia com reposição de eletrólitos, antibioticoterapia, uso de antieméticos e suporte nutricional5

Há tempos não se recomenda mais a realização de jejum (salvo em vômito muito intenso não controlado com antiemético), Residente em Nutrição e Nutrição Clinica de Cães e Gatos Mestre, Doutoranda em Nutrição de Cães e Gatos Serviço de Nutrição Clínica. Hospital Veterinário da UNESP, Campus de Jaboticabal Pamela Bosche Vasconcerva Stephanie de Souza Theodoro Prof. Aulus Carciofi pois a falta de alimento no lúmen intestinal resulta em atrofia de vilosidades, imunossupressão local, perda da microbiota comensal e quebra da barreira intestinal favorecendo absorção de toxinas, translocação de bactérias e septicemia com aumento do tempo de recuperação do paciente. Estudo realizado por MOHR et al.6 mostrou que animais com parvovirose apresentando vômito tiveram melhores resultados quando alimentados precocemente do que aqueles que não receberam esse suporte desde o início da terapia. Sugere-se emprego de dieta com alta digestibilidade, proteína moderada, baixa fibra e baixa gordura, fracionada em pequenas refeições ao longo do dia para melhor digestão e absorção dos nutrientes, além de reduzir indução de náuseas e vômitos7 . Destaca-se, nestes casos, especialmente em filhotes com gastroenterites agudas e hiporexia, o uso de sonda nasoesofágica ou nasogástrica. Estes tubos permitem manter o intestino e o paciente alimentado, com o fornecimento adequado de proteínas e calorias que serão necessárias à recuperação estrutural da mucosa intestinal, manutenção da microbiota benéfica e da imunidade local e sistêmica do filhote. Estes tubos permitem, adicionalmente, o fornecimento de água e eletrólitos, com a mesma eficiência que a fluidoterapia subcutânea, com a vantagem de ser mais fisiológica e apresentar menor risco.

As diarreias crônicas são aquelas presentes por período superior a três semanas. Podem resultar de vários processos diferentes de doença, como inflamação crônica, disbiose, reações adversas ao alimento, linfangiectasia, linfoma alimentar, distúrbios imunológicos, entre outros3. Anteriormente referida como doença inflamatória intestinal, este termo foi mais recentemente substituído por enteropatias crônicas, pois na realidade a maioria dos pacientes não requer o emprego de anti-inflamatórios para seu manejo clínico3. Para o diagnóstico das enteropatias crônicas é importante se excluir doenças extraintestinais, como alteração pancreática, hepática, renal, hipoadrenocorticismo e hipercalcemia, assim como causas de diarreia aguda.

Há muita incerteza e falta de conhecimento da patogenia destes processos, de modo que as enteropatias crônicas têm sido classificadas de acordo com a resposta do paciente ao tratamento, podendo ser agrupadas em: enteropatias responsivas ao alimento (+50% dos casos); a antibióticos; a imunossupressores; e não responsivas. Na Figura 1, indica-se a proporção relativa de cada uma delas3. Uma subclassificação importante, dentro de cada um destes tipos refere-se à perda ou não de proteína pelo intestino, referida como enteropatia com perda proteica3,4. Pacientes com enteropatia com perda proteica apresentam hipoalbuminemia e grave comprometimento da condição nutricional, sinalizando apresentação grave da doença com prognóstico menos favorável.

FIG 1. Enteropatias classificadas de acordo com a resposta ao tratamento. Adaptada de Dandrieux, 2016.

Estudos recentes demonstram que mais da metade dos pacientes apresentam remissão dos sintomas de diarreia somente pela instituição de dieta hipoalergênica, sem necessidade de antibióticos ou anti-inflamatórios3,8. Esta deve ser a primeira abordagem terapêutica quando o animal está clinicamente estável, com apetite e albumina sérica normal. Os animais que são responsivos à modificação alimentar em geral são mais jovens, apresentam manifestações clínicas mais leves e têm predominantemente diarreia de intestino grosso. Animais que respondem a imunossupressores são frequentemente de meia idade a idosos, com manifestações clínicas mais severas e apresentam com maior frequência diarreia de intestino delgado8.

Nas enteropatias responsivas ao alimento os resultados são observados em poucos dias após a nova dieta. Se não houver melhora em até duas ou três semanas, deve-se reconsiderar a opção terapêutica3. Um exemplo desta manifestação são as reações de hipersensibilidade alimentar, quando o organismo do animal identifica um componente do alimento e desencadeia reação imunológica contra este antígeno, levando às manifestações clínicas gastrointestinais e/ou cutâneas1,2,3,7,9. No entanto, é importante se ter em mente que em muitos pacientes que apresentam resposta ao alimento hipoalergênico, o processo patológico e o motivo da resposta terapêutica positiva não são ainda completamente elucidados. Em alguns pacientes, após alguns meses de remissão com a dieta hipoalergênica, o retorno ao alimento habitual não resulta em retorno dos sintomas, permanecendo a função gastrointestinal preservada, indicando que não se tratava de verdadeira alergia alimentar. Talvez a dieta hipoalergênica reduza a inflamação e/ou disbiose, com retorno da função de proteção intestinal, incluindo recomposição da barreira e mecanismos de tolerância imunes.

A dieta hipoalergênica pode ser comercial à base de proteína hidrolisada ou caseira. Na opção de dieta caseira, esta deve ser composta de uma única fonte de carboidrato e uma única fonte de proteína. É essencial que estas sejam inéditas, nunca ingeridas antes pelo animal, o que será levantado com cuidado durante o inquérito alimentar1,2,9. Para fins de diagnóstico, o fornecimento de uma fonte proteica e de carboidrato pode ser empregado por no máximo três ou quatro semanas. Esta dieta, no entanto, apresenta múltiplas deficiências nutricionais e não deve, em hipótese alguma, ser empregada por mais tempo do que isto. Caso a opção seja manter o animal com dieta caseira, deve-se recorrer a um profissional da nutrição para garantir que a formulação seja completa e balanceada.

O fornecimento de dietas comerciais hipoalergênicas com proteína hidrolisada1,2,3,7,9 é também opção diagnóstica e, sem dúvida, a mais segura para manter o paciente a longo prazo. Nunca é demais reforçar que não se pode empregar alimento caseiro empírico, que não tenha sido balanceado por profissional habilitado. Alimentos comerciais ditos “para intestino sensível” ou com proteínas incomuns não são opções seguras para estes casos. A redução do tamanho molecular da proteína faz com que não sejam reconhecidas pelo sistema imune, não induzindo reação de intolerância alimentar1,2,9. Além disso, apresentam elevada digestibilidade1,2,7, podendo favorecer sua absorção pelo animal e são completas e balanceadas, apresentando todos os nutrientes essenciais3,7

O uso de antibióticos é a segunda linha de tratamento. Quando apenas a dieta hipoalergênica não funciona, resulta em resposta parcial, ou o animal encontra-se muito debilitado, a antibioticoterapia deve ser a opção terapêutica. Os mecanismos de ação também não são totalmente elucidados, sugerindo-se modificação da microbiota e/ou modulação do sistema imune, que resulta em melhora da barreira intestinal. Animais que apresentam resposta satisfatória são classificados com enteropatia responsiva a antibióticos. Na Figura 2 temos os principais medicamentos utilizados3.

Fig 2. Medicamentos utilizados no tratamento de enteropatias crônicas. Adaptado de Dandrieux, 2016.

Recidivas são frequentes após interrupção da antibioticoterapia, portanto, questiona-se o quão eficientes são de fato. Se o animal não apresentar melhora após duas semanas de tratamento, considerar o uso de drogas imunossupressoras3 (Figura 2). Os imunossupressores devem ser reservados apenas para os animais que não respondem à troca da dieta e ao uso de antibióticos. No entanto, podem ser considerados já de início em casos severos de enteropatia acompanhados de perda proteica, nos pacientes com baixa albumina sérica. É bastante importante que o profissional, após tentar dieta e antibióticos sem sucesso, complemente o plano diagnóstico por meio de endoscopia e colonoscopia acompanhadas de exame histopatológico. A caracterização da inflamação e a exclusão de neoplasias são condutas diagnósticas indispensáveis, a serem conduzidas antes da introdução de anti-inflamatórios. Animais que apresentam melhora clínica com o uso destes medicamentos são classificados com enteropatia responsiva a imunossupressores3.

O sucesso do tratamento com estes medicamentos é similar (acima de 60%) e nos casos mais graves pode- -se associar o uso de drogas imunossupressoras com a dieta e a antibioticoterapia. A resposta do animal ao tratamento irá determinar as alterações nas doses e medicamentos utilizados3. Uma parcela dos animais com enteropatias crônicas não respondem a nenhum dos tratamentos propostos, sendo classificados como enteropatias não responsivas. 

EXAMES COMPLEMENTARES E NUTRIENTES

Dentre os vários testes sugeridos, dosagem de albumina sérica, vitamina D, cobalamina (vitamina B12) e ácido fólico talvez sejam os mais relevantes em pacientes com enteropatias crônicas10,11. Animais com inflamação intestinal relevante podem ter diminuída a função de barreira e com isto perder proteína e albumina pela parede intestinal. Nestes casos o prognóstico torna-se reservado e a sobrevida do animal geralmente não é longa. Como a albumina está associada à manutenção da pressão oncótica, nos casos de hipoalbuminemia podem ocorrer ascite, dispneia e taquipneia4. Intervenção robusta com dieta hipoalergênica, ultrabaixo teor de gordura (abaixo de 6% na matéria seca) em casos de linfangiectasia intestinal e terapia com anti-inflamatório pode ser necessário.

A deficiência de vitamina D é descrita em cães e gatos com enteropatia crônica, especialmente associada a pacientes com enteropatias com perda proteica, má absorção e esteatorréia3,10,11. A concentração sérica desta vitamina está inversamente associada a marcadores de inflamação sistêmica, sendo nutriente que além de sua função no metabolismo ósseo, é necessário à expressão de função imune normal12. A absorção de vitamina B12 é um processo complexo que envolve a secreção de proteína transportadora e sua ligação a receptores específicos na mucosa. Em função disso, na insuficiência pancreática exócrina e em algumas enteropatias crônicas ocorre má absorção e deficiência de vitamina B12, com sintomas correspondentes13,14. Sua concentração plasmática deve ser sempre mensurada (deficiência: <250ng/L cães e <290ng/L gatos) e, no caso desta não poder sem avaliada, sua suplementação é considerada mandatória3,13,14 (suplementação oral: durante 12 semanas e dosar a cobalamina sérica uma semana após a última suplementação - 250µg/dia para gatos e de 250 a 1000µg/dia para cães. Via subcutânea: semanalmente durante 6 semanas, seguida de uma dose 1 mês após - 250µg/semana para gatos e de 250 a 1500 µg/semana para cães). Por fim, a absorção de folato ocorre apenas na porção proximal do intestino delgado, doenças que acometem esta região podem levar a alterações na concentração de folato sérico14,15.

A avaliação desses quatro parâmetros é importante em animais que apresentam enteropatias crônicas. A partir deles, é possível se inferir sobre a gravidade do quadro e se definir a melhor estratégia de tratamento, incluindo, por exemplo, suplementação de proteína nas hipoalbuminemias, suplementação de B12 e de vitamina D.

Considerando-se os aspectos abordados das enteropatias, sejam elas agudas ou crônicas, pode-se verificar que a dieta tem papel preponderante na recuperação dos animais. Nas enteropatias crônicas, a modificação alimentar resulta em mais de 50% de sucesso na resolução dos sintomas de diarreia, desde que seja estabelecida de modo correto, sendo hipoalergênica (proteína inédita ou hidrolisada), tenha os teores de gordura (restrição na linfangietasia) e proteína (aumento na hipoalbuminemia) ajustados e o paciente receba ao menos suplementação de vitamina B12.

REFERÊNCIA

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3. DANDRIEUX, J. R. S. Inflammatory bowel disease versus chronic enteropathy in dogs: are they one and the same? Journal of Small Animal Practice, 57(11), p. 589–599, 2016.

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7. ZORAN, D. Nutritional management of gastrointestinal diseases. Clinical Techniques in Small Animal Practice, Vol 18, No 4, p. 211-217, 2003.

8. ALLENSPACH, K. et al. Chronic enteropathies in dogs: Evaluation of risk factors for negative outcome. Journal of Veterinary Internal Medicine, 21(4), p. 700–708, 2007.

9. SALZO, P. S.; LARSSON, C. E. Hipersensibilidade alimentar em cães. Arq. Bras. Med. Vet. Zootec., v.61, n.3, p.598-605, 2009.

10. ALLENSPACH, K. et al. Hypovitaminosis D is associated with negative outcome in dogs with protein losing enteropathy: A retrospective study of 43 cases. BMC Veterinary Research, 13(1), p. 1–6, 2017.

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12. TITMARSH, H. et al. Low Vitamin D status is associated with systemic and gastrointestinal inflammation in dogs with a chronic enteropathy. PLoS ONE, 10(9), p. 1–13, 2015.

13. Cobalamin Information. Texas A&M University Veterinary Medicine & Biomedical Sciences, 2020. Disponível em: https://vetmed.tamu.edu/gilab/research/cobalamin-information/. Acesso em 03 de Julho de 2020.  

14. Serum Cobalamin (Vitamin B12) and Folate. Texas A&M University Veterinary Medicine & Biomedical Sciences, 2020. Disponível em: https://vetmed.tamu.edu/gilab/service/assays/b12folate/. Acesso em 03 de Julho de 2020.

15. Folate Information. Texas A&M University Veterinary Medicine & Biomedical Sciences, 2020. Disponível em: https://vetmed.tamu.edu/gilab/research/folate-information/. Acesso em 03 de Julho de 2020.